Artigo – O Ministério Público como reflexo da nossa história

Por Maísa Silva Melo de Oliveira

 

O Ministério Público, da forma como hoje o conhecemos, foi desenhado na Constituição de 1988 como uma conquista inestimável da população brasileira. Era então a retomada democrática, e a Constituinte imaginou uma instituição multifacetada, que promoveria a justiça muito além do papel de órgão acusador. Atribuições como a defesa dos direitos humanos, a promoção da cidadania e dos interesses difusos e coletivos prometiam à sociedade brasileira um verdadeiro agente de transformação social.

Passados 30 anos da Carta Cidadã, porém, o Ministério Público ainda busca a identidade constitucional e meios de exercê-la plenamente, marcado pela volumosa demanda punitivista, que pauta a instituição e ocupa espaço por vezes impossível de ser compartilhado com a demanda que surge dos demais incisos do art. 129 da Constituição.

Imerso na atuação criminal e confrontado com a diversidade de atribuições constitucionais, ainda depara com o desafio de não representar, em seus quadros funcionais, a pluralidade latente da sociedade brasileira.

É o que mostra a pesquisa intitulada “Ministério Público: Guardião da Democracia?”, realizada entre março de 2015 e março de 2016, que faz um diagnóstico sintomático do Ministério Público brasileiro: a instituição promotora da cidadania, dos direitos das minorias e de pautas que desafiam o status quo é composta, em sua maior parte, por representantes da classe social que domina as terras brasileiras desde 1500: homens brancos de origem privilegiada, que priorizam o combate à criminalidade e, mais recentemente, o “combate à corrupção”.

A radiografia institucional não poderia ser mais fiel: a pesquisa realizada em parceria com o Conselho Nacional do Ministério Público, pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) da Universidade Cândido Mendes, coletou dados dos sítios eletrônicos de todos os ramos do Ministério Público, realizou entrevistas e formou grupos de estudos, identificando o perfil dos membros da Instituição e principais linhas de atuação.

Evidenciou que 70% dos membros do Ministério Público são homens, enquanto dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios realizada em 2014 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) demonstram que a população brasileira tem 48,4% de homens e 51,6% de mulheres, com 6,3 milhões de mulheres a mais que homens.

A pesquisa do CESeC demonstrou, ainda, que 77% dos membros do Ministério Público são brancos, representando 51% da população brasileira, ao passo que 20% dos membros são pardos, enquanto que este número na população do país é de 40%.

Evidenciou, ainda, que 60% dos membros possuem genitor com curso superior, dado que representa apenas 9% da população brasileira:

Os dados demonstram uma sub-representatividade de gênero, de raça e de classe social, o que leva a um distanciamento entre o membro do Ministério Público e a realidade em que sobrevive a maior parte do público que demanda sua atuação. Isso termina por moldar um consenso institucional dissociado da vontade popular.

Enquanto a energia institucional se volta para a atuação repressiva e punitiva – 62% dos membros apontam o combate à corrupção como a maior prioridade do Ministério Público, com a atuação criminal em segundo lugar, com 49% – , a sociedade demanda uma atuação proativa, pautada nas demandas populares por saúde, educação e moradia, dentre outras imprescindíveis à consecução do princípio da dignidade da pessoa humana, as quais são apontadas na pesquisa como prioridade por apenas 40% dos membros, figurando em quinto lugar na lista.

O fato é que o quase consenso, dentro dos quadros do Ministério Público, de que a corrupção é o “mal do século”, que precisa ser combatida notadamente por meio da atuação do poder punitivo, ignora dados que demonstram serem menos corruptas as sociedades menos desiguais, em que não há o intransponível abismo social, gerador de violência, abusos e iniquidades, como o existente em nosso país. Sociedades em que promotores de justiça e seu público não se encontram apenas no gélido gabinete da promotoria, mas no uso comum do transporte público de qualidade ou do sistema de saúde público e universal. Assim, o compartilhamento do espaço público e da coisa pública entre autoridades e cidadãos termina por elevar a qualidade dos serviços públicos prestados e do exercício da cidadania, reduzindo a desigualdade social e, consequentemente, a criminalidade.

Com olhar sensível, identifica-se que há uma falsa dicotomia entre a atuação criminal e a promoção da cidadania, entre o “combate à corrupção” e a defesa dos direitos fundamentais, porque ao atuar para a redução da desigualdade social se está de forma mais efetiva fortalecendo as instituições, os meios de controle e a inserção das parcelas menos favorecidas da sociedade nas instituições que as defendem, gerando representatividade e, consequentemente, qualidade e efetividade da resposta institucional aos anseios por justiça social.

Igualmente necessário rever os critérios de admissão utilizados nos concursos de ingresso na carreira do Ministério Público, posto que priorizam o conhecimento teórico rebuscado, afastado da realidade social, dos mecanismos democráticos de participação popular e da compreensão quanto à configuração extremamente desigual da sociedade em que o membro do Ministério Público atuará.

É, portanto, a apropriação das instituições pela sociedade como um todo, refletindo a diversidade de gênero, raça e origem, o meio eficaz para alcançarmos uma sociedade mais “livre, justa e solidária”, como previsto no preceito constitucional.

Nesta senda, algumas iniciativas institucionais apontam o caminho a seguir, que passa necessariamente por uma inserção social do membro do Ministério Público e o combate às formas mais arraigadas de perpetuação da desigualdade na sociedade brasileira. São ações afirmativas como o Grupo de Enfrentamento ao Racismo Institucional, pioneiramente instituído no Ministério Público do Estado de Pernambuco; o Coletivo por um Ministério Público Transformador, que se propõe a pensar a Instituição sob a ótica dos princípios constitucionais e objetivos da República; o Movimento Nacional de Mulheres do Ministério Público, que traz para a Instituição a luta por igualdade de gênero; a Comissão de Direitos Homoafetivos e Diversidade, que atua na garantia dos direitos da população LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais ou Transgêneros); as iniciativas da ENAMP – Escola Nacional do Ministério Público, que tem repensado os concursos de ingresso na carreira em face da diversidade das atribuições constitucionais do órgão, bem como as recomendações consubstanciadas na Carta de Brasília pelo Conselho Nacional do Ministério Público, que visam à otimização da atuação extrajudicial, com ações efetivas de promoção da cidadania em larga escala.

O novo Ministério Público, portanto, após 30 anos de configuração pela Carta de 1988, precisa de fato acontecer, com a intensificação de iniciativas como as acima referidas, para que possamos realmente exercer a função de agentes de transformação social.

Referências Bibliográficas:

LEMGRUBER, Julita. Ministério Público: Guardião da Democracia Brasileira? / Julita Lemgruber, Ludmila Ribeiro, Leonarda Musumeci, Thais Duarte – Rio de Janeiro : CESeC, 2016. Disponível em: https://www.ucamcesec.com.br/wp-content/uploads/2016/12/CESEC_MinisterioPublico_Web.pdf. Acesso em 10 de julho de 2018.

CESEC- CENTRO DE ESTUDOS DE SEGURANÇA E CIDADANIA. Ministério Público: Guardião da Democracia ou Órgão de Acusação Penal? Disponível em: https://www.ucamcesec.com.br/projeto/ministerio-publico-guardiao-da-democracia-ou-orgao-de-acusacao-penal/. Acesso em 10 de julho de 2018.

CESEC- CENTRO DE ESTUDOS DE SEGURANÇA E CIDADANIA. Folder Pesquisa Ministério Público: Guardião da Democracia Brasileira? Principais Resultados. Disponível em: https://www.ucamcesec.com.br/wp-content/uploads/2016/12/Folder1-_corrigido-3.png. Acesso em 09 de julho de 2018.

CESEC- CENTRO DE ESTUDOS DE SEGURANÇA E CIDADANIA. Pesquisa Revela Perfil Elitizado e Distorções na Atuação do MP. Disponível em: HTTPS://WWW.UCAMCESEC.COM.BR/REPORTAGENS/PESQUISA-REVELA-PERFIL-ELITIZADO-E-DISTORCOES-NA-ATUACAO-DO-MP/ . Acesso em 10 de julho de 2018.

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios : síntese de indicadores 2014 / IBGE, Coordenação de Trabalho e Rendimento. – Rio de Janeiro : IBGE, 2015. Disponível em: HTTPS://BIBLIOTECA.IBGE.GOV.BR/VISUALIZACAO/LIVROS/LIV94935.PDF. Acesso em 10 de julho de 2018.

REIS, Sérgio Roberto Guedes. Corrupção se combate com redução da desigualdade e não com moralismo. Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2017/06/01/corrupcao-se-combate-com-reducao-da-desigualdade-e-nao-com-moralismo/ Acesso em 10 de julho de 2018.

 

*A autora deste artigo de opinião é Promotora de Justiça do MPPE, atualmente titular da 2ª Promotoria de Justiça de Defesa da Cidadania de Olinda, com atuação nas áreas de Consumidor e Saúde.

Confira a íntegra desta edição da Revista Dfato no link: https://issuu.com/amppepernambuco/docs/dfato12final.

 

Veja a publicação original em:

https://amppe.com.br/artigo-o-ministerio-publico-como-reflexo-da-nossa-historia/

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